Evolução histórica do direito falimentar e recuperacional
Direitos e Deveres

Evolução histórica do direito falimentar e recuperacional


Na Roma antiga, houve um período em que o devedor respondia por suas obrigações com a própria liberdade e às vezes até mesmo com a própria vida. A garantia do credor era, pois, a pessoa do devedor. Assim, este poderia, por exemplo, tornar-se escravo do credor por certo tempo, bem como entregar-lhe em pagamento da dívida uma parte do seu corpo.
Somente com a edição da Lex Poetelia Papiria em 428 a.C., a qual proibiu o encarceramento, a venda como escravo e a morte do devedor, o direito romano passou a conter regras que consagravam sua responsabilidade patrimonial, em contraposição às regras de outrora. Que o puniam com a pena de responsabilidade pessoal por suas dívidas. Enfim, passou-se a entender que os bens do devedor, e não a sua pessoa, deveriam servir de garantia aos seus credores.
Mas ainda assim havia um problema a ser solucionado: e quando o patrimônio do devedor não fosse suficiente para a satisfação dos seus credores? Melhor dizendo: como pagaria os seus credores aquele devedor que não possuísse bens suficientes para tanto? A solução legislativa mais antiga a essas indagações, segundo a doutrina comercialista, estava contida no Código de Justiniano.
Com efeito, no direito de Justiniano havia a previsão de uma execução especial contra o devedor insolvente: tratava-se da chamada missio in possessio bonorum, por meio da qual os credores adquiriam a posse comum dos bens do devedor, os quais, por sua vez, passavam a ser administrados por um curador, o curator bonorum. A partir de então, os credores adquiriam, consequentemente, o direito de vender os bens do devedor, com o intuito de saldar a dívida que este tinha em relação àqueles.
Perceba-se que nesse período inicial o direito falimentar – se é que já podemos chama-lo – possuía um caráter extremamente repressivo, tendo como finalidade precípua a punição do devedor, e não a satisfação dos legítimos interesses dos seus credores, consistentes no recebimento de seus créditos. Ademais, essa execução especial do direito de Justiniano era aplicável a qualquer tipo de devedor, fosse ele exercente de atividade econômica ou não. Aliás, como bem destacado no início, nessa época ainda nem existia o “direito comercial”, pois o seu surgimento, como visto, só ocorreu muito tempo depois, e somente a partir desse momento é que foram estabelecidas regras distintas para a disciplina das relações jurídicas dos agentes econômicos.
Na Idade Média, quando o direito comercial começou a ser construído a partir da compilação dos usos e práticas mercantis, sobretudo nas cidades italianas, a doutrina também identificou regras especiais para a execução dos devedores insolventes que podiam ser vistas como precursoras do atual direito falimentar. Todavia, ainda se tratava de regras que se aplicavam indistintamente a qualquer espécie de devedor, comerciante ou não, e que mantinha seu caráter extremamente repressivo.
Mas a codificação napoleônica, conforme já apontado, provocou uma profunda mudança no direito privado, dividindo-o em dois ramos autônomos e independentes, cada qual com um regime jurídico próprio para a disciplina de suas relações. O direito civil se consolidou como regime jurídico geral (direito comum) aplicável à quase totalidade das relações privadas, e o direito comercial se firmou como regime jurídico especial aplicável à disciplina das atividades mercantis, identificadas a partir da antiga teoria dos atos de comércio.
A mudança que o Code de Commerce de Napoleão trouxe para o direito comercial atingiu, consequentemente, o direito falimentar, que passou a constituir um conjunto de regras especiais, aplicáveis restritamente aos devedores insolventes que revestiam a qualidade de comerciantes. Para o devedor insolvente de natureza civil, não se aplicavam as regras do direito falimentar, mas as disposições constantes do regime jurídico geral, qual seja, o direito civil.
Observe-se, todavia, que a codificação napoleônica não chegou a alterar uma outra característica marcante do direito falimentar desde os seus primórdios: o caráter repressivo e punitivo do devedor.
Mas o tempo passa, a sociedade evolui, a economia avança em uma velocidade incrível e o direito falimentar, acompanhando esse processo de mudanças, vê-se obrigado a adaptar-se a novos paradigmas. A falência, até então considerada como uma certa patologia de mercado inerente aos devedores desonestos, passa a ser vista com outros olhos e analisada sob novas perspectivas.
Com efeito, o desenvolvimento econômico vivenciado a partir da Revolução Industrial e acentuado progressivamente por meio do processo batizado de globalização trouxe relevantes alterações na conjuntura socioeconômica, que exigiram do operador do direito uma completa reformulação dos princípios e institutos do direito falimentar.
A noção de insolvência com um sentido pejorativo – como algo, enfim, ocorrente apenas ao devedor desonesto – começa a ser revista, passando a ser considerada um fenômeno normal, inerente ao risco empresarial. A afirmação dos postulados da livre-iniciativa e da livre-concorrência conduz à inexorável constatação de que não apenas os devedores desonestos atravessam crises econômicas, mas qualquer devedor.
Ademais, essas crises econômicas, de tão naturais que se tornam, passam a ser encaradas sob novas perspectivas, não mais se colocando para elas como único e inevitável remédio à decretação da falência do devedor e o seu consequente afastamento do mercado. O reconhecimento da função social da empresa e dos efeitos nefastos que a paralisação de certos agentes econômicos produz fez com que o legislador percebesse que muitas vezes a permanência do devedor em crise poderia ser mais benéfica do que a sua imediata exclusão do meio empresarial, ante a possibilidade de sua recuperação e da consequente manutenção de sua atividade econômica, que gera empregos e contribui para o progresso econômico e social.
Essa moderna concepção do direito falimentar, contraposta à antiga concepção que consagrava regras extremamente punitivas ao devedor, influenciou a reformulação da legislação em diversos países.
Hodiernamente, portanto, o direito falimentar não mais tem como característica a preocupação preponderante de punir o devedor insolvente, criminalizando sua conduta e excluindo-o do mercado a todo custo. A grande preocupação do direito falimentar atual é a preservação da empresa, razão pela qual a legislação tenta fornecer ao devedor em crise todos os instrumentos necessários à sua recuperação, reservando a falência apenas para os devedores realmente irrecuperáveis.



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