Os cursos jurídicos deveriam formar juízes parciais
Direitos e Deveres

Os cursos jurídicos deveriam formar juízes parciais


A IMPARCIALIDADE ? O discurso jurídico vigente se apresenta propondo que a magistratura deva ser imparcial. A imparcialidade, portanto, é vista como valor. Há, entretanto, dois sentidos para a idéia de imparcialidade ? sentidos que são tomados como sinônimos sem de fato o serem.
Por um lado, a magistratura é imparcial quando não favorece esta ou aquela parte no processo a partir de amizades ou relações de simpatia do juiz em relação a uma das partes. Nesse sentido, é a legislação processual que mais diretamente cuida da imparcialidade, estabelecendo os mecanismos do amplo contraditório, mecanismos de suspeição e impedimento etc.
Por outro lado, porém, a imparcialidade ganha outros ares, significando uma aplicação mecânica da lei. O magistrado seria, então, um profissional técnico (eu prefiro chamá-los de ?apertadores de parafusos jurídicos?, porque a expressão ?técnico? esconde o que realmente são), a quem caberia decidir se o problema concreto das partes se encaixa neste ou naquele escaninho do discurso jurídico vigente.
O PROBLEMA DA IMPARCIALIDADE ? No primeiro aspecto, a imparcialidade é valor em si mesmo auto-evidente. O juiz, como representante do Estado (o Estado-juiz, como se costuma dizer), não pode, após ter tomado para si o poder de solucionar conflitos (eliminando a autocomposição, salvo exceções expressamente permitidas em lei), decidir o caso a partir de critérios de amizades ou simpatias pessoais. Estabelecer uma solução a partir de tais critérios seria retirar da norma jurídica o caráter de generalidade e abstração, para tornar-lhes, ao contrário, concretas e específicas. Se você é meu amigo, você pode; se meu inimigo, não pode. Como disse acima, esse problema é solucionado dentro do discurso dogmático vigente, por meio dos mecanismos de impedimento e suspeição, bem como das regras de amplo contraditório.
Todavia, no segundo aspecto, a imparcialidade não é desejada. Na verdade, ela sequer é possível. Essa segunda idéia de imparcialidade esconde premissas que não são ditas e que, não obstante, não são verdades absolutas e devem ser questionadas.
A premissa escondida no discurso da imparcialidade é a de que o Direito seria um objeto pronto, algo dado, sobre o que o profissional vai atuar de modo ?técnico?, ou seja, vai atuar de modo desprovido de valoração. Essa premissa foi muito bem desenvolvida na França pós-revolução, em especial no império napoleônico, com a Escola da Exegese, para quem o Judiciário deveria aplicar a lei de modo mecânico. Essa teoria, porém, é bem definida historicamente ? tratava-se de afastar a magistratura, ainda vinculada ao Antigo Regime, da construção do Direito, por meio da hermenêutica, para deixar o fenômeno jurídico totalmente concentrado nas mãos do Legislativo ? composto pela burguesia recém chegada ao poder político.
Porém tal premissa é falsa. O Direito não é uma realidade pronta, mas, ao contrário, uma realidade construída. O Direito não é algo pronto que se interpreta, mas algo que resulta da interpretação. O Direito é realidade histórica e se forma a partir das interpretações vigentes num dado momento histórico, a partir da necessidade de solucionar determinados problemas historicamente colocados.
Um exemplo interessante (retirado da peça A Alma Imoral, de Clarice Niskier, a partir de adaptação do texto homônimo de Nilton Bonder) é o caso do povo judeu, que estabelecia os laços de filiação a partir da paternidade ? ou seja, judeus eram os filhos de pais judeus. Quando invadidos pelo Império Romano, tiveram seus homens mortos e suas mulheres estupradas, fazendo surgir um problema ? como haverá o povo judeu de continuar a existir se a nova geração será constituída por crianças filhas de pais romanos? A solução foi, diante do desafio vivido, adaptar o Direito ? a filiação passou a ser pensada a partir da maternidade, fazendo com que as novas crianças, embora filhas de pais não-judeus, fossem consideradas judias por serem filhas de mães judias.
Muitas passagens poderiam ser lembradas, mas basta, por ora, retomar a teoria de Miguel Reale ? o Direito não é só uma relação de normas jurídicas a fatos concretos. O Direito é, também (talvez, sobretudo), valor. Em sua fórmula já conhecida, Direito é fato, valor e norma. Isso significa, na prática, que o Direito, ao não se esgotar na norma, depende de uma atividade hermenêutico-valorativa do juiz (pensando o juiz como um intérprete privilegiado, pois que sua análise é que decide a lide).
O ERRO DO ENSINO JURÍDICO VIGENTE ? O modelo de ensino jurídico hoje praticado, sobretudo nas faculdades particulares, por motivos cuja análise extrapolaria este ensaio, esconde essa realidade dos estudantes (que, por sua vez, detém grande parcela de responsabilidade por serem eles os que primeiro demandam cursos cada vez mais ?diretos?, ou ?práticos?, ou ?com menos matérias inúteis? ? leia-se, cada vez com mais decoreba superficial e menos análise crítica).
O ensino jurídico de hoje está se limitando a ser uma explanação da lei, associada a uma explanação das interpretações consolidadas nos tribunais superiores. E tudo isso de modo cada vez mais e mais superficial. Os alunos estão se limitando a ler sinopses jurídicas e resumos para concursos. Isso quando muito, ou seja, quando vão além do esquema de sala de aula do próprio professor. A sala de aula deixou de ser o local para se discutir se o Direito-como-está corresponde ao Direito-como-deveria-ser e os alunos estão sendo levados a entender que o Direito-como-está é o único âmbito de conhecimento de que precisam se ocupar.
CONSEQÜÊNCIA DO ERRO ? Como resultado desse modelo, o ensino jurídico está lançando no mercado uma massa de profissionais que simplesmente ignoram o papel que desempenham (de fato desempenham, conscientemente ou inconscientemente, num sentido ou em outro!) na construção do Direito e, portanto, da sociedade. O modelo praticado, hoje, nas instituições de ensino, portanto, realiza aquilo que se usa chamar o fetichismo do Direito ? ou seja, o aluno é levado a acreditar que o Direito é algo definido antes (e fora) de sua atividade interpretativa, como uma coisa já pronta (dada) que se observa de modo distante.
A IMPARCIALIDADE INDESEJADA ? Com esse modelo, formam-se pessoas que, ao ignorarem a existência de um papel criador na atividade hermenêutica, ao ignorarem que a lei não possui significado em si, mas apenas um significado dado por uma interpretação, acabam por ser operários jurídicos ? apertadores de parafusos jurídicos ? inabilitados para reconhecer que o Direito é, também, obra se sua atividade (quer saibam disso, quer não).
Aqui fica claro que, nesse âmbito, não há imparcialidade ? ou se toma partido de um lado (repetição do Direito-como-está) ou de outro (busca do Direito-como-deve-ser) ? não há meio termo. Ou seja, entende-se que simplesmente não é possível a imparcialidade como aplicação mecânica da lei, pois ao aplicar de modo ?técnico? (mecânico) a lei, o juiz não está sendo imparcial, mas, ao contrário, está sendo parcial ? está tomando partido do Direito-como-está.
Evidente que nem sempre o Direito-como-está merece reparos. O que se critica não é a aplicação do discurso jurídico vigente. Criticamos, sim, que essa aplicação seja feita de modo irrefletido Criticamos que o ensino jurídico não esteja preparando o aluno para conhecer o papel criador de sua atividade hermenêutica. Criticamos que a sala de aula não esteja mais sendo um espaço de análise teórica do Direito-como-deve-ser e tenha se tornado num espaço de exaustiva (e cada vez mais simplificada) repetição do Direito-como-está.
CONCLUSÃO ? Queremos, pois, não um juiz imparcial (?técnico? sem conteúdo valorativo), mas um juiz que tenha consciência de que, goste ou não, o fenômeno jurídico é construído a partir de uma atividade hermenêutico-valorativa e que, portanto, ao acreditar que ele, em seu labor, deixa de valorar, está justamente tomando (de modo irrefletido) partido a favor do Direito-como-está, do discurso jurídico vigente, construído pelos que detém o poder político-econômico para tanto, em desprestígio de princípios de justiça social.
Nesse sentido, pois, queremos um juiz parcial ? que tome partido dos ideais de justiça social ao realizar a tarefa de aplicar o Direito. Também nesse sentido, queremos alunos que tomem consciência, o mais rapidamente possível, de que o Direito não é algo dado, mas algo que se constrói ? e, ao tomarem consciência desse fato, estejam prontos para tomar posição de modo consciente diante dos problemas sociais apresentados ao Ordenamento Jurídico.



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