Art. 14 da Lei 10.826/2003 e Tipicidade Material
O mero fato de o funcionamento de arma de fogo não ser perfeito não afasta a tipicidade material do crime definido no art. 14 da Lei 10.826/2003. Com base nesse entendimento, a Turma indeferiu habeas corpus em que condenado por porte ilegal de arma de fogo pleiteava o reconhecimento da atipicidade material de sua conduta, sob a alegação de que não restara comprovada, de forma válida, a potencialidade lesiva da arma apreendida. Aduzia, ainda, que a constitucionalidade do delito de arma desmuniciada encontrar-se-ia em análise nesta Corte. Inicialmente, asseverou-se que o presente writ não trataria do caso do porte de arma sem munição, nem do porte de munição sem arma, dado que o paciente fora denunciado porque trazia consigo revólver municiado com cartuchos intactos. Considerou-se que, na espécie, a perícia não concluíra pela inidoneidade da arma municiada portada pelo paciente. Ressaltou-se que o revólver não apresentava perfeitas condições de funcionamento, mas, conforme destacado na sentença condenatória, possuiria aptidão de produzir disparos, o que seria suficiente para atingir o bem juridicamente tutelado. HC 93816/RS, rel. Min. Joaquim Barbosa, 6.5.2008. (HC-93816)
A discussão ainda toca a tipicidade ou não de porte ilegal de arma de fogo a ser determinada por sua ofensividade ao bem jurídico. Para melhor compreensão, vamos ao cerne da discussão.
As teses sobre a atipicidade de condutas relacionadas ao porte de arma são fundadas na afirmação de que uma arma sem capacidade de realização de disparos não oferece risco penalmente relevante à sociedade, logo, não tem ofensividade típica. Ora, o conceito de arma de fogo jamais se afasta da "capacidade real para disparar projéteis. Nisso, para esta corrente, é que reside o seu perigo efetivo (típico). Arma que não é idônea (nas circunstâncias concretas em que é encontrada ou utilizada) para efetuar disparos não reúne a ofensividade exigida pelo tipo e pelo moderno Direito penal", configurando, assim, meio absolutamente ineficaz ou, até mesmo, exemplo de crime impossível. (GOMES, Luiz Flávio. Arma de fogo desmuniciada é crime?.
Disponível em http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=14.
Ressalte-se que existem correntes que afirmam que há ofensividade no porte ilegal de arma de fogo, mesmo sem condições de realizar disparos (desmuniciada, por exemplo), tendo em vista a intimidação diferenciada que uma arma produz, mesmo sem munição.
No entanto, quando da discussão sobre a tipicidade ou não do porte ilegal de arma desmuniciada, por exemplo, parte da doutrina diferencia a potencialidade ofensiva do poder de intimidação.
O poder de intimidação, para esta corrente, é distinto da ofensividade típica, e não é suficiente para caracterizar a tipicidade da conduta, pois, se assim fosse, todas as armas de brinquedo ou pedaços de pau também deveriam ser criminalizados.
Para os defensores desta corrente, a tipicidade do porte de arma de fogo está atrelada à sua ofensividade típica ao bem jurídico. Vejamos:
Em razão da evolução científica do Direito Penal, o professor Luiz Flávio Gomes leciona que não se pode mais conceber um fato típico doloso sem três categorias valorativas:
- conduta criadora de risco proibido relevante para o bem jurídico;
- produção de um resultado jurídico relevante (ofensa ao bem jurídico protegido);
- imputação objetiva.
Assim, deve haver uma "constatação efetiva de um risco proibido relevante no objeto material considerado (arma, droga etc.). Do contrário, haveria uma outra etapa de antecipação da tutela penal e desse modo chegaríamos a um perigo de perigo de perigo... de perigo de lesão ao bem jurídico" (GOMES, Luiz Flávio. Arma de fogo desmuniciada é crime?.
Disponível em http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=14.
E, para a criação deste risco proibido relevante, devem ser reunidas duas condições que são a danosidade efetiva da arma (potencialidade efetiva concreta), e a disponibilidade (possibilidade de uso imediato, segundo sua específica finalidade). É a soma desses dois fatores resulta na ofensividade típica, relevante para o Direito Penal (GOMES, Luiz Flávio. Arma de fogo desmuniciada é crime?.
Disponível em http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=14.
Nessa esteira, concluem muitos autores que, sempre que um objeto for criminalizado em si mesmo, deve haver a danosidade material e a disponibilidade para uso imediato; e a conduta globalmente considerada deve ser dotada, portanto, de risco proibido penalmente relevante.
Acrescentam os doutrinadores, ainda, o princípio da intervenção mínima do Direito Penal que traduz duas idéias, segundo o professor Luiz Flávio: "a tutela penal é fragmentária e subsidiária. Leia-se: somente os ataques mais intoleráveis aos bens jurídicos mais relevantes entram na esfera penal e, mesmo assim, quando outros ramos do Direito não forem adequados para a proteção do bem jurídico".
Por todo o exposto, para o professor Luiz Flávio Gomes, "Armas quebradas, armas obsoletas, armas descarregadas, não oferecem essa aportação. Podem ser utilizados como instrumentos intimidadores, sim. Mas no contexto de outro fato típico. Pela teoria da imputação objetiva, de outro lado, o risco criado deve ter relação direta com o âmbito de proteção do tipo penal específico" (GOMES, Luiz Flávio. Arma de fogo desmuniciada é crime?.
Disponível em http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=14.
Logo, para ele, permanece a diferença entre o potencial de intimidação e a ofensividade típica, sendo esta formada pela danosidade material e a disponibilidade para uso imediato. E, apenas quando a arma possuir a ofensividade típica, criando risco penalmente relevante, o porte de arma nos termos legais será típico. Ainda cabe ressaltar nessa conclusão, seu desdobramento lógico: a arma sem potencial para gerar disparos (desmuniciada, obsoleta...), obviamente, tem apenas potencial de intimidação, mas não tem ofensividade típica.
No entanto, no caso noticiado, a despeito de a defesa haver suscitado o reconhecimento de atipicidade material pela falta de comprovação da potencialidade lesiva da arma, a Corte proferiu julgamento asseverando que a perícia havia afirmado, tão somente, que o revolver não possuía perfeitas condições de funcionamento. Mas que possuía, sim, aptidão para promover disparos - suficiente para atingir o bem jurídico tutelado. Logo, não configurou a hipótese de atipicidade.