Direitos e Deveres
Função social do contrato
O Código Civil de 2002 procurou afastar-se das concepções individualistas que nortearam o diploma anterior para seguir orientação compatível com a socialização do direito contemporâneo. O princípio da socialidade por ele adotado reflete a prevalência dos valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor fundamental da pessoa humana.
Com efeito, o sentido social é uma das características mais marcantes do novo diploma, em contraste com o sentido individualista que condiciona o Código Beviláqua. Há uma convergência para a realidade contemporânea, com a revisão dos direitos e deveres dos cinco principais personagens do direito privado tradicional, como enfatiza Miguel Reale: o proprietário, o contratante, o empresário, o pai de família e o testador.
Nessa consonância, dispõe o art. 421 do Código Civil: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.”
A concepção social do contrato apresenta-se modernamente como um dos pilares da teoria contratual. Por identidade dialética, guarda intimidade com o princípio da “função social da propriedade” previsto na Constituição da República e tem por escopo promover a realização de uma justiça comutativa, aplainando as desigualdades substanciais entre os contraentes.
Efetivamente, o dispositivo supratranscrito subordina a liberdade contratual à sua função social, com prevalência dos princípios condizentes com a ordem pública.
A função social do contrato constitui, assim, princípio moderno a ser observado pelo intérprete na aplicação dos contratos. Alia-se aos princípios tradicionais, como os da autonomia da vontade e da obrigatoriedade, muitas vezes impedindo que estes prevaleçam.
Segundo Caio Mário, a função social do contrato serve precipuamente para limitar a autonomia da vontade quando tal autonomia esteja em confronto com o interesse social e este deva prevalecer, ainda que essa limitação possa atingir a própria liberdade de não contratar, como ocorre nas hipóteses de contrato obrigatório. Tal princípio desafia a concepção clássica de que os contratantes tudo podem fazer porque estão no exercício da autonomia da vontade. Essa constatação tem como consequência, por exemplo, possibilitar que terceiros, que não são propriamente partes do contrato, possam nele influir, em razão de serem direta ou indiretamente por ele atingidos.
É possível afirmar que o atendimento à função social pode ser enfocado sob dois aspectos: um, individual, relativo aos contratantes, que se valem do contrato para satisfazer seus interesses próprios; e outro, público, que é o interesse da coletividade sobre o contrato. Nessa medida, a função social do contrato somente estará cumprida quando a sua finalidade – distribuição de riquezas – for atingida de forma justa, ou seja, quando o contrato representar uma fonte de equilíbrio social.
Observa-se que as principais mudanças quanto ao âmbito dos contratos no novo diploma foram implementadas por cláusulas gerais, em paralelo às normas marcadas pela estrita casuística. Cláusulas gerais são normas orientadoras sob forma de diretrizes, dirigidas precipuamente ao juiz, vinculando-o, ao mesmo tempo em que lhe dão liberdade para decidir. São elas formulações contidas na lei, de caráter significativamente genérico e abstrato, cujos valores devem ser preenchidos pelo juiz, autorizado para assim agir em decorrência da formulação legal da própria cláusula geral. Quando se insere determinado princípio geral (regra de conduta que não consta do sistema normativo, mas que se encontra na consciência dos povos e é seguida universalmente) no direito positivo do país (Constituição, leis, etc.), deixa este de ser princípio geral, ou seja, deixa de ser regra de interpretação e passa a caracterizar-se como cláusula geral.
As cláusulas gerais resultaram basicamente do convencimento do legislador de que as leis rígidas, definidoras de tudo e para todos os caos, são necessariamente insuficientes e levam seguidamente a situações de grave injustiça.
Cabe destacar, dentre outras, a cláusula geral que proclama a função social do contrato, ora em estudo, e a que exige um comportamento condizente com a probidade e a boa-fé objetiva (CC, art. 422). Podem ser também lembrados como integrantes dessa vertente, aos quais se poderá aplicar a expressão “função social do contrato”, os arts. 50 (desconsideração da personalidade jurídica), 156 (estado de perigo), 157 (lesão), 424 (contrato de adesão), parágrafo único do art. 473 (resilição unilateral do contrato), 884 (enriquecimento sem causa) e outros.
Deve-se ainda realçar o disposto no parágrafo único do art. 2035 do novo Código: “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”. As partes devem celebrar seus contratos com ampla liberdade, observadas as exigências da ordem pública, como é o caso das cláusulas gerais.
Visto que a função social é cláusula geral, assinala Nelson Nery Junior, o juiz poderá preencher os claros do que significa essa “função social”, com valores jurídicos, sociais, econômicos e morais.
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